No dia 21 de abril cumpriram-se 60 anos da partida do primeiro grande contingente militar de Lisboa para Angola. Viajaram, nessa manhã nimbada, 1800 homens, a maioria na força da vida e da esperança, a caminho do desconhecido; o desconhecido era Angola, a guerra, o interior norte com clima tropical húmido, mosquitos e selva, o interland de todos os mistérios e perigos; o desconhecido eram os rios, a floresta e o capim densos, as picadas, os abatizes e as emboscadas, as forças contrárias treinadas para espalhar o terror e a morte.
Viajaram a bordo do Niassa, atulhando de juventude o porão bafiento sem condições de luminosidade e arejamento, sem treino militar e motivação para a defesa de território nunca antes por eles visto; viajaram como se o Niassa, um dos símbolos das viagens para o martírio, voltasse ao registo dos navios negreiros destinados a escravos acorrentados.
No meu romance, “Neste cais, para sempre”, baseando-me em testemunhos de militares e na imprensa da época, descrevi o momento da partida, os equívocos do regime, a cegueira expansionista, a manipulação dos portugueses na escola e no trabalho, na vida em família e social, na igreja e nas corporações.
Era assim o tempo em que apenas uma cabeça pensava e dava ordens, em que apenas o pensamento de um homem, que dizia gostar de ter sido 1º ministro de um rei absoluto, prevalecia. Como não viveu no século XVIII arvorou-se ele próprio em rei absoluto, mas um rei menor, cobardolas, guardado por todas as forças de segurança, acolitado pela PIDE de obediência cega e por uma legião de delatores que vendiam a dignidade por um prato de lentilhas; acolitado pela Igreja de pensamento ancestral, avessa à liberdade, que agora se vingava do anticlericalismo injustificado da I República; uma Igreja pré-vaticanista que não tinha ainda assimilado os princípios da Rerum novarum de Leão XIII.
Era o Portugal dos pequenitos no seu melhor: cruento, pantanoso e sem metáforas, que desafiava a paciência dos pobres e a liberdade de todos.
Na pág. 241 do romance, a dada altura, escrevi:
O cais da Fundição converteu-se naquela manhã na saudade de pedra de que falava Pessoa.
Quando o Niassa largou um silvo mais profundo e dorido afastou-se do cais, ficando entre o casco e as cordas que o amarravam, um abismo. No varandim, centenas de gritos e de lenços brancos ondulavam ao vento presos pelas mãos sofridas dos que se despediam. No navio, os militares amontoavam-se no convés não menos lacrimosos, não sabendo o que os esperava. Nesse dia sombrio não havia heróis: havia, isso sim, correntes de saudade e de incerteza que amarraram ao cais de despedida quem ali estava, até que os mastros que apontavam ao céu se escondessem no horizonte.”
As partidas passaram depois para o Cais da Rocha Conde de Óbidos. O silêncio e a dor da despedida, forma de resistência dos que não têm voz, sulcaram a terra bravia da repressão feita das blandícias dos carraços nos Curros do Aljube e em Caxias, afastando o povo do regime.
Cada navio que partia assombrava a solidão crescente do tiranete e, em simultâneo, cavava fundo o isolamento de Portugal.
Em memória e homenagem aos que partiram e, sobretudo aos que não voltaram bem podemos chamar ao lugar Cais das lágrimas.