Quarta-feira, 22 de Janeiro de 2025
No menu items!
Ernesto Areias
Ernesto Areias
Advogado. Colunista de A Voz de Trás-os-Montes

Cais das lágrimas

No dia 21 de abril cumpriram-se 60 anos da partida do primeiro grande contingente militar de Lisboa para Angola

No dia 21 de abril cumpriram-se 60 anos da partida do primeiro grande contingente militar de Lisboa para Angola. Viajaram, nessa manhã nimbada, 1800 homens, a maioria na força da vida e da esperança, a caminho do desconhecido; o desconhecido era Angola, a guerra, o interior norte com clima tropical húmido, mosquitos e selva, o interland de todos os mistérios e perigos; o desconhecido eram os rios, a floresta e o capim densos, as picadas, os abatizes e as emboscadas, as forças contrárias treinadas para espalhar o terror e a morte.

Viajaram a bordo do Niassa, atulhando de juventude o porão bafiento sem condições de luminosidade e arejamento, sem treino militar e motivação para a defesa de território nunca antes por eles visto; viajaram como se o Niassa, um dos símbolos das viagens para o martírio, voltasse ao registo dos navios negreiros destinados a escravos acorrentados.
No meu romance, “Neste cais, para sempre”, baseando-me em testemunhos de militares e na imprensa da época, descrevi o momento da partida, os equívocos do regime, a cegueira expansionista, a manipulação dos portugueses na escola e no trabalho, na vida em família e social, na igreja e nas corporações.

Era assim o tempo em que apenas uma cabeça pensava e dava ordens, em que apenas o pensamento de um homem, que dizia gostar de ter sido 1º ministro de um rei absoluto, prevalecia. Como não viveu no século XVIII arvorou-se ele próprio em rei absoluto, mas um rei menor, cobardolas, guardado por todas as forças de segurança, acolitado pela PIDE de obediência cega e por uma legião de delatores que vendiam a dignidade por um prato de lentilhas; acolitado pela Igreja de pensamento ancestral, avessa à liberdade, que agora se vingava do anticlericalismo injustificado da I República; uma Igreja pré-vaticanista que não tinha ainda assimilado os princípios da Rerum novarum de Leão XIII.

Era o Portugal dos pequenitos no seu melhor: cruento, pantanoso e sem metáforas, que desafiava a paciência dos pobres e a liberdade de todos.

Na pág. 241 do romance, a dada altura, escrevi:
O cais da Fundição converteu-se naquela manhã na saudade de pedra de que falava Pessoa.

Quando o Niassa largou um silvo mais profundo e dorido afastou-se do cais, ficando entre o casco e as cordas que o amarravam, um abismo. No varandim, centenas de gritos e de lenços brancos ondulavam ao vento presos pelas mãos sofridas dos que se despediam. No navio, os militares amontoavam-se no convés não menos lacrimosos, não sabendo o que os esperava. Nesse dia sombrio não havia heróis: havia, isso sim, correntes de saudade e de incerteza que amarraram ao cais de despedida quem ali estava, até que os mastros que apontavam ao céu se escondessem no horizonte.”

As partidas passaram depois para o Cais da Rocha Conde de Óbidos. O silêncio e a dor da despedida, forma de resistência dos que não têm voz, sulcaram a terra bravia da repressão feita das blandícias dos carraços nos Curros do Aljube e em Caxias, afastando o povo do regime.

Cada navio que partia assombrava a solidão crescente do tiranete e, em simultâneo, cavava fundo o isolamento de Portugal.

Em memória e homenagem aos que partiram e, sobretudo aos que não voltaram bem podemos chamar ao lugar Cais das lágrimas.

OUTROS ARTIGOS do mesmo autor

Maio pardo

Dia Mundial do Livro

Abrilada, tentativa de golpe palaciano

45 anos da Constituição da República

Deus e a fé não se googlam

Meter água na água (I)

NOTÍCIAS QUE PODEM SER DO SEU INTERESSE

Um “elefante na sala”? Ou dois?

ARTIGOS DE OPINIÃO + LIDOS

Notícias Mais lidas

ÚLTIMAS NOTÍCIAS