Ao lado do padre, paramentado, estava o sacristão Luís, que manco se deixava arrastar com a caldeirinha de água benta na mão, impante de vaidade dentro da opa escarlate.
E a mole humana aproximava-se do altar, moçoilas à frente em disputa com as mais idosas para um lugar que pensavam ter por direito. Todas ungidas em agradar ao padre, portador de olhos esverdeados, incisivos e matadores.
E um regimento de pobres ia para a missa ainda em latim, corria o ano de 1962. Os loucos iam também e abocanhavam-se em rezas para os santos e para o padre. E babavam-se como espuma de sabão. E o padre de expressão macia, com sotaina preta até ao chão, olhava-os levantando a cruz. Subindo a hóstia com a mão esquálida. E perante as dificuldades do seu rebanho, dizia-se tocado pela pergunta de S. Paulo aos cristãos da Galácia que se afastavam de Cristo: “Será em vão que tenhais padecido tanto?”
Os campos rasgavam-se com os arados dos carreiros, enquanto os bois gigantes ruminavam em bocas bailantes, picadas pelos ferrões das varas rijas que entrando na pele como lavaredas, irrompiam em doloroso braseiro.
No inverno, as manhãs eram frias. E as fontes jorravam cristalinas, voando o passarelho que trinava alegre como astro cintilante. E os pobres passavam pobres em caravanas em dias de sexta-feira, levando nas bocas palavras resignadas e suspiros.
Dentro dos sacos transportavam comida de mendigos em sinais exaustos de cansaço e olhares feridos. Ah! Manhãs frias de luar e uma anciã de 90 anos que enregelada morreu, deleitada num sorriso, lembrando o pastoreio do gado e uma paixão desenfreada que em menina tivera com o Zé da Calça Curta.
E com frio, os jovens abriam-se à paixão ardente do beijo, enquanto se ouviam rumores de toque de bombos, ferrinhos, realejo e melopeias deslizantes que faziam os coxos dançar e as viúvas abrirem-se em esgares e sorrisos.
E uma mulher chorava a saudade de um amor passado, mordendo os beiços com olhos ávidos de devassidão. Olhando pela janela baixava o rosto, procurando proteção nas sombras que em ziguezagues passavam a correr.
Com dor amarga, a mulher olhava para a chuva com frio, com raiva, com dor no peito, e das entranhas saíam espirros de tosse.
Nessa manhã não havia luar e a noite estava fria. A chuva caía em bramidos suaves e em sorrisos brotados, o povo, olhando para o céu, proclamava: “Bendito! Bendito seja”.
Entretanto, passavam na estrada para o ribeiro, pobres sem licença de pedir e mulheres da vida sem matrícula que tiritando de frio desbobinavam em ecos tíbios de surdina: “Bendito! Bendito seja”.