Era um alfacinha de gema nascido no Bairro Alto, onde sempre morou. Durante as nossas amenas cavaqueiras, alguma delas a bordo do elétrico 20, que fazia o percurso entre a Gomes Freire e o Cais do Sodré, que ambos apanhávamos amiúde, na paragem existente na Rua Conde de Redondo, defronte do edifício da Robbialac, ou no trajeto pedestre até ao Rossio, que várias vezes empreendemos, descendo a Av. da Liberdade, com uma paragem na loja da ginjinha, junto ao velho cinema Éden, confidenciava-me episódios das suas vivências, que sempre me surpreenderam pela sua franqueza e sinceridade. Nunca consegui descortinar por que razão se abria assim comigo. Talvez visse em mim o verdadeiro amigo que nunca teve. Não sei.
Foi combatente em Cabinda, situação que volta e meia motivava troca de impressões, entre nós, sobre esse tempo difícil a que ambos não escapámos. Por força do vendaval social que assolou o mundo laboral durante a primeira década de 2000, muitas empresas reduziram os seus postos de trabalho através de rescisões de contratos ou reformas antecipadas. A nossa empresa não escapou a esse período conturbado, tendo também nós os dois, à semelhança de muitos outros, sido abrangidos por essas medidas draconianas, pelo que ambos nos aposentamos antecipadamente.
Apesar desta nova faceta das nossas vidas, quis o destino que continuássemos a encontrar-nos regularmente, uma vez que o Daniel continuou a viver no Bairro Alto, e atendendo ao facto de eu passar a dedicar-me ao voluntariado numa IPSS, sediada também nesse bairro histórico da capital, os nossos encontros ocasionais aconteciam, normalmente, na Rua da Rosa, próximo de um Quiosque, aí existente, onde ele se dirigia habitualmente para adquirir o jornal desportivo Record. Um belo dia, porém, para surpresa minha, encontrei-o com um pequeno aparelho colocado na traqueia, vim a saber, então, que tinha sido sujeito a uma traqueotomia, situação que me deixou constrangido e perplexo. Sinceramente, jamais me ocorreu vê-lo um dia naquela situação. Depois deste inesperado acontecimento os nossos encontros passaram a rarear, até terem desaparecido completamente. Movido pela curiosidade, que me apoquentava, decidi um dia passar pelo tal Quiosque, do qual ele era cliente habitual, e perguntar ao dono se sabia algo sobre o meu amigo. Qual não foi a minha surpresa ao receber a noticia de que o Daniel tinha falecido inesperadamente, há uns tempos, sozinho, na casa onde sempre viveu, sem o apoio de alguém que pudesse minorar o seu sofrimento e solidão. Descansa em paz Daniel.